segunda-feira, 18 de julho de 2011

Competentes e diferentes: O futebol feminino fará um favor a si mesmo se permitir as diferenças em relação ao masculino

Em algum ponto da Copa do Mundo de Futebol Feminino, Marta deve ter sido vista como detentora de alguma habilidade atlética que falta a jogadores da seleção masculina brasileira. Foi por isso que, em mais uma partida decepcionante na Copa América, centenas de torcedores gritaram seu nome e evocaram sua presença num estádio argentino - enquanto ela jogava na distante Alemanha.


Mas nesse país, ao contrário, ela era a anti-heroína dos espectadores, tanto que mal podia tocar na bola sem ser acompanhada por apupos de protesto. Por que isso ocorreu? Ninguém realmente sabe. A mídia alemã estava perdida (e um tanto desconsolada), mas Marta poderia perfeitamente ter incorporado a ambiguidade de emoções típica das reações provocadas pela seleção brasileira. Dois momentos da atuação de Erika na Copa ilustram bem essa ambiguidade. Foi ela quem marcou o gol mais artístico do torneio, no jogo contra a Guiné Equatorial, e foi a mesma Erika que recebeu a desaprovação mais intensa quando, perto do fim do segundo tempo contra os Estados Unidos, simulou uma lesão, fez o jogo ficar parado por vários minutos e foi finalmente carregada para fora de campo numa maca - da qual saltou rapidamente quando viu que sua equipe estava sendo pressionada. Ou será que Marta e Erika teriam sido vítimas da frustração dos espectadores alemães que queriam que o Brasil, o outro principal favorito, fosse eliminado, já que a sua equipe havia perdido a partida para o Japão - para descrença geral?
A Copa do Mundo de Futebol Feminino de 2011 havia sido planejada para se tornar uma apoteose desse esporte, apoteose que levaria o futebol feminino a uma nova dimensão de visibilidade internacional - e o evento teve, de fato, mais espectadores (mais de 30 mil por jogo) e mais atenção da mídia (cada jogo era transmitido por uma das duas estações de TV alemãs mais populares) que qualquer copa feminina anterior. O público continuou grande até o fim do torneio, mas sem a menor dúvida todas as altas esperanças subitamente se esvaziaram quando a Alemanha e, em seguida, a seleção brasileira, foram eliminadas. No fim das contas, esse notável megaevento nos deixa com um feixe de emoções difícil de desenredar e ainda mais de analisar.
Visto de longe, ao menos, o que houve com a seleção feminina brasileira lembra muito a história recente da seleção masculina. Havia de novo muito talento (se não ilimitado), mas um nível comparativamente baixo de preparo físico, nenhuma competência estratégica e um trabalho ainda mais fraco da equipe técnica. Alguém deveria ter dito a Marta e Erika que se comportar como cópias pálidas dos superastros da seleção masculina não as tornaria simpáticas a ninguém, especialmente para um público de futebol feminino. E a seleção alemã? Parece que foi incapaz de lidar com a pressão causada por uma grotesca confusão resultante da badalação bem-intencionada da mídia em torno desta Copa. Estou me referindo à confusão pseudofeminista entre a promessa política de igualdade de direitos para as mulheres, de um lado, e de outro a garantia impossível de igualdade de desempenho atlético. Por mais frustrante que isso possa ser para essas jogadoras de futebol, ninguém deveria ter anunciado ou mesmo prometido que seu torneio igualaria as emoções recordadas da Copa do Mundo de Futebol masculino de 2006 na Alemanha.
Várias bolhas estouraram - e surge a questão de se este ano marcará, portanto, um retrocesso na trajetória do futebol feminino. Uma resposta realista é que esse não será definitivamente o caso para os quatro países que passaram às semifinais: para três deles (França, Japão e Suécia), seu sucesso veio como uma boa surpresa e, em razão de circunstâncias específicas da partida de quarta de final contra o Brasil, o futebol feminino se tornou ainda mais popular que nos Estados Unidos. O problema real, porém, o problema não limitado nacionalmente, é outro.
Não foi novidade para qualquer pessoa que realmente conheça esportes, mas a enorme exposição na mídia tornou finalmente inevitável a amarga experiência de que, em termos de desempenho atlético, o futebol feminino sempre estará várias décadas atrás do masculino. Existe alguma reação racional para isso, além da resignação silenciosa? Em um nível abstrato, pode-se tirar a conclusão de que o futebol feminino precisa tomar - ou precisa se dar - o tempo necessário para o desenvolvimento de uma estética própria. Alguns outros esportes, como o tênis feminino, o voleibol feminino ou o slalom feminino, podem servir de exemplos inspiradores e mais específicos nesse caso (esses esportes todos tiveram mais tempo para se formar que o futebol feminino). Exemplos inspiradores porque, embora seja muito improvável que alguma mulher consiga vencer os principais tenistas masculinos numa quadra de tênis, esse fato não impediu o tênis feminino de se tornar tão popular e quase tão bem pago quanto o masculino. De um ponto de vista estético (o que é diferente do ponto de vista de vencer ou perder), o tênis feminino não é nem pior nem melhor que o masculino - é simplesmente diferente. Quem estiver interessado na tensão com frequência agressiva e sempre confrontante de uma partida de saque e voleio preferirá o tênis masculino, enquanto o apelo específico do tênis feminino reside hoje em longas trocas de bola do fundo da quadra, com avanços súbitos à rede. Esses dois tipos diferentes de beleza atlética podem até atrair tipos diferentes de espectadores - e sua diferença não acompanhará necessariamente as divisões tradicionais de gêneros.
O futebol feminino fará um favor decisivo a si mesmo se permitir que diferenças similares (em relação ao jogo masculino) surjam e se destaquem. Nenhum jogador de futebol masculino toca na bola, cruza do meio de campo e faz lançamentos longos chegaram ao seu alvo da mesma maneira que Marta e Cristiane. E algum dia haverá uma razão para dizer que nenhum público de uma partida de futebol masculino assiste ao jogo com o mesmo tom de alegria que os espectadores do jogo feminino. 

Tradução de Celso Paciornik
Hans Ulrich Gumbrecht é Professor de Literatura na Universidade Stanford e autor de Elogio da Beleza atlética (CIA. das Letras)